A locomoção, o “direito de ir e vir”, são protegidos no artigo 5º, XV da Constituição Federal. Trata-se do capítulo destinado aos direitos e garantias inerentes a todo e qualquer cidadão brasileiro.
Indiscutivelmente, as plataformas de viagens, viabilizadas pelos aplicativos de transportes em geral, contribuíram muito para a efetividade desse direito, auxiliando o exercício do direito de locomoção aos seus usuários.
Antes do surgimento dos serviços de transportes por aplicativo, os deficientes físicos tinham duas opções: Ou enfrentavam uma série de barreiras no já complicado serviço público de transporte – ônibus –, ou tinham que dispender uma quantia muitas vezes inimaginável e inviável para o uso de taxis.
Quando do surgimento das plataformas digitais de viagens, que disponibilizavam a prestação de serviço de transportes por aplicativo, criou-se uma alternativa mais viável e mais acessível economicamente para o exercício do direito constitucional de ir e ver das pessoas com deficiências.
A pergunta que se faz é: Os aplicativos de transportes estavam preparados para a prestação digna e eficiente desse serviço?
Recentemente, nosso escritório patrocinou a causa de uma cadeirante que, utilizando-se da alternativa de tais empresas para viabilizar suas idas e vindas à consultas, estudos e etc, enfrentava uma verdadeira via crucis diária em relação aos tratamentos que lhe eram dispensados.
Quando solicitava as viagens pelos aplicativos, e informava aos motoristas sua condição física de cadeirante, sofria com as negativas, sob a justificativa de que os veículos transportavam “pessoas e não coisas”, referindo-se à indiscutível necessidade de se transportar, também, a cadeira de rodas da consumidora.
Oras, se a pessoa é cadeirante, consumidora do serviço de transportes disponibilizado pela empresa no mercado de consumo, como poderia realizar a viagem dissociada de sua cadeira de rodas? O que faria quando aportasse ao destino sem ela?!
Essas recusas eram constantes, e sempre desestimulava a consumidora ao exercício do seu direito constitucional de ir e vir.
Mas uma recusa, em específico, ultrapassou a esfera do aceitável: Em uma das oportunidades em que a consumidora solicitou o serviço, pra comparecer à consulta médica, o motorista, de início, aceitou a realização da viagem, mas, ao ser informado quanto à condição de deficiência física da consumidora, houve por bem recusá-la, justamente sob o argumento de que “transportava pessoas e não coisas”.
Não bastasse, negou-se a cancelar a solicitação pelo aplicativo, gerando uma pendência financeira à Autora, e, ainda, passou a ameaça-la, fazendo rondas pela sua residência. A consumidora podia acompanhar a conduta do motorista pelo próprio aplicativo, e temia que o mesmo comparecesse até a sua residência para adotar alguma postura mais agressiva.
Tais circunstâncias, sem dúvidas, ferem uma série de direitos, não só constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e o direito de ir e vir, como, também, direitos do consumidor, como a segurança na prestação efetiva do serviço, a não exposição da consumidora à situações vexatórias, métodos coercitivos, dentre outros.
Em razão desses fatos, a cliente fora orientada pelo nosso escritório a elaborar um boletim de ocorrência em desfavor da plataforma, narrando as circunstancias, e, ainda, distribuiu-se ação judicial, pleiteando pelo reconhecimento dos danos morais sofridos em relação aos fatos.
Para a surpresa, quando da leitura da tese defensiva apresentada pela plataforma, tem-se que a mesma, além de ser, em sua maior parte, evasiva e genérica, passou-se a dizer que a empresa seria ilegítima para figurar no polo passivo da demanda, pois, ao seu ver, seria, apenas, a plataforma de acesso, o que afastaria a incidência da relação de consumo, e, consequentemente, do Código de Defesa do Consumidor. Assim, atribuíra a responsabilidade, exclusivamente, ao seu motorista, sem sequer identifica-lo.
Ora, no direito do consumidor, o artigo 6º, III, VI e VIII do CDC, prevê como direitos básicos dos consumidores em geral, a informação adequada e clara sobre os serviços, a inversão do ônus da prova em favor dos consumidores, e, ainda, a possibilidade de reparação de eventuais danos a eles causados.
Quando a empresa cria um software, disponibilizando ao mercado de consumo um serviço de transportes, deve assumir a responsabilidade pelo mesmo. Isso deve ser aliado, ainda, ao fato de que, aos consumidores, não é oportunizada a escolha pelo motorista. Tal é realizado diante da logística desenvolvida pela própria empresa, que, assim, é responsável pelos motoristas que cadastra em seus aplicativos, e disponibilizam para a prestação de serviço. Inclusive, em tese, após submetê-los aos treinamentos específicos.
Seguindo esse raciocínio, a Douta Magistrada do 8º Juizado Especial Cível da Comarca de Cuiabá – MT, Dra. Patrícia Ceni, homologou projeto de sentença do r. juiz leigo, Dr. Júnior Luis da Silva Cruz, reconhecendo não só a legitimidade passiva da empresa, bem como o dano moral sofrido pela Autora, em razão da conduta discriminatória da empresa à pessoa com deficiência física.
Apesar da empresa ter recorrido para afastar a aplicabilidade da sentença, em 28/02/2023, a Turma Recursal Única do Estado de Mato Grosso, composta pelos Doutos Desembargadores Dr. Luis Aparecido Bortolussi Junior, Dr. Claudio Roberto Zeni Guimarães e Dra. Lamisse Roder Feguri Alves Correa, houveram por bem manter a sentença nos seus exatos termos.
Diante dessa vitória em conjunto, por toda a equipe de advogados, o escritório expressa a sensação de dever cumprido, manifesta a solidariedade com a Autora, e continuará, sempre, a postos para defender o mercado de consumo de maneira geral de toda e qualquer discriminação, a que título for.
Nesta oportunidade, inclusive, parabeniza o Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, pelo olhar humano com que tem julgado casos semelhantes, pautando-se sempre pela preservação da dignidade da pessoa humana, em todos os seus aspectos, e, principalmente, assegurando o cumprimento da Lei nº 13.146/2015, para promover, às pessoas com deficiências, o exercício de suas direitos e liberdades fundamentais.
Para conhecimento, segue a íntegra do acórdão proferido:
RECURSOS INOMINADOS – AÇÃO INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – APLICATIVO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS – PESSOA COM DEFICIÊNCIA – CORRIDA CANCELADA – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA REJEITADA – FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – DANOS MORAIS FIXADOS EM SENTENÇA EM R$ 5.000,00 – VALOR RAZOÁVEL E PROPORCIONAL – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO CONHECIDOS E DESPROVIDOS. 1. Trata-se, na origem, de ação indenizatória em que a parte autora alega que houve falha na prestação dos serviços da Requerida. Relata que por ser portadora de deficiência (cadeirante) tem muita dificuldade em conseguir um transporte junto a Requerida, pois, ao informar que necessita de espaço para conduzir sua cadeira de rodas, as viagens são canceladas. 2. Narra que, no dia 22/03/2022, após receber várias recusas de viagem, um motorista aceitou. Sucede, porém, que ao informar que era portadora de deficiência e precisava transportar sua cadeira o motorista respondeu que não poderia transportar o objeto, visto que não tinha espaço disponível no porta-malas, uma vez que seu veículo era equipado com “kit-gás”. 3. Diante disso, surgiu controvérsia sobre quem iria cancelar a viagem, alegando que o motorista se dirigiu ao seu endereço para fazer com que ela cancelasse a corrida, em razão de tal conduta, alega que se sentiu ameaçada e registrou boletim de ocorrência. 4. Sentença meritória que julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais, condenando a ré a título de danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). 5. Em sede recursal, a parte autora pugna pela majoração do valor arbitrado a título de danos morais, por entender que não foram fixados dentro dos parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade. 6. Em suas razões, a ré pleiteia a reforma da sentença, alegando, preliminarmente, ser parte ilegítima para figurar no polo passivo desta demanda, e, no mérito, requer a improcedência dos pedidos iniciais, sustentando que não houve falha na prestação dos serviços da uber, uma vez que respeita o direito dos usuários com deficiência, sendo contra qualquer ato de discriminação. 7. Afirma, ainda, que, no momento em que tomou conhecimento dos fatos narrados, deu todo o suporte e efetuou o cancelamento da cobrança, além de ter enviado notificação ao motorista. 8. Inicialmente, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva arguida pela ré/recorrente. Isso porque, em tese, foi a mesma quem deu causa aos fatos ensejadores desta ação, por interposta pessoa, e, portanto, há de responder a lide a fim de meritoriamente decidir-se sobre as responsabilidades que lhe são imputadas. 9. Da análise dos autos, vê-se que a parte autora juntou provas documentais que comprovam o fato constitutivo do seu direito, quais sejam, comprovante de cancelamento da corrida e conversas realizadas com o motorista, que corroboram com as alegações trazidas na exordial. 10. Para tanto, destaco trecho da sentença do juízo de origem que entendeu que “No caso, sem embargos das orientações recomendadas pelo aplicativo requerido, os elementos probatórios apresentados com a petição inicial evidenciam que elas têm sido insuficiente para atender as necessidades especiais de determinado seguimento de seus usuários, notadamente os portadores de necessidades especiais, sobretudo porque a Autora tem se deparado com cancelamentos sucessivos de viagens ao informar que é cadeira e necessidade compartimento adequado para transportar sua cadeira de rodas.” 11. Ressalto que a ré ao fornecer um serviço aos seus usuários transmite a segurança aos mesmos, em razão do notório renome que possui, e, quando o serviço não é prestado conforme ofertado, fica caracterizada a falha na prestação dos serviços, nos termos do art. 14 do CDC. 12. Da análise dos elementos dos autos, vê-se que a conduta da ré em cancelar corridas e não prestá-las a contento dos seus usuários, neste caso, é apta a gerar o abalo moral reconhecido na origem. Isso porque a Reclamante foi submetida a situação desgastante e angustiante, que possui a extensão suficiente para configurar o lesão extrapatrimonial, conforme estabelecido pelos artigos 186 e 927 do Código Civil. 13. Configurado o dever de indenizar da recorrente, sabe-se que o valor da indenização deve ser proporcional, justo e razoável, se mostrando compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do causador do dano e as condições sociais do ofendido. 14. Portanto, a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), arbitrada pelo Juízo a quo, não comporta reforma, posto que adequada aos parâmetros acima delineados, bem como à jurisprudência sobre o tema, como exemplifico: “Transporte de pessoas – Indenização por dano moral – Aplicativo de transporte Uber – Legitimidade passiva – Reconhecimento – Empresa exerce a atividade de intermediação do serviço de transporte, aproximando os motoristas cadastrados em sua plataforma e os passageiros usuários do aplicativo. CDC – Aplicabilidade – Reconhecimento – Artigo 7º, parágrafo único – Solidariedade entre os participantes da cadeia de fornecimento do serviço. Recusa de atendimento de passageiro acompanhado de cão-guia – Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência – Lei nº 13.146, de 6 de Julho de 2015 – Restrição indevida de direito fundamental – Violação a dever de transporte em igualdade de condições com as demais pessoas e a eliminação de barreiras e obstáculos ao seu acesso – Artigo 46 do Estatuto – Falha na prestação do serviço – Reconhecimento – Responsabilidade objetiva da ré – Dano moral configurado – Dificuldade injustificada de acesso a transporte oferecido ao público em geral – Fatos da causa que por si sós vilipendiam a dignidade do autor, ultrapassada a linha do mero aborrecimento – Indenização devida – ‘Quantum’ indenizatório – Arbitramento em patamar adequado – Observância aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade – Regra de equilíbrio – Extensão e consequência da injustiça – Pretensão à majoração ou redução afastada – Inaplicabilidade da Súmula 54 do C. STJ ao caso – Termo inicial dos juros de mora e correção monetária – Arbitramento – Honorários advocatícios – Adequação para incidência cobre o valor da condenação, conforme critérios do artigo 85 § 2º do CPC Recurso da ré provido em parte, recurso do autor não provido.” (TJ-SP – AC: 10058107820208260602, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 08/06/2022) 15. Sentença mantida pelos próprios fundamentos, nos termos do artigo 46 da Lei n.º 9.099/95. 16. Recursos conhecidos e desprovidos. 17. Por consequência, condeno a empresa ré ao pagamento de custas e honorários advocatícios, estes ora fixados em 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação (art. 55, caput, da Lei n. 9.099/95). 18. Condeno a parte autora ao pagamento das custas e honorários advocatícios, estes ora fixados em 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação (art. 55 da Lei n. 9.099/95), suspensa a execução destas verbas sucumbenciais ante a presença na espécie do disposto no art. 98, §§ 1º, I e VI, e 3º, do CPC.